Crônica: Nunca terei motivo para esconder o rosto
Hélio Freitas Filho, agente de polícia federal
Nunca terei motivo para esconder o meu rosto
Os procedimentos de praxe estão quase no final, o desembaraçado escrivão Gomes organiza a vasta papelada para comunicar às diversas instituições do sistema criminal a respeito do encaminhamento ao presídio dos muitos detidos numa operação policial realizada ao alvorecer.
Enquanto finaliza a confecção dos últimos ofícios, Gomes aproveita para se gabar perante seus pares de seus feitos futebolísticos e propagandear, dentre outras façanhas, que é o maior artilheiro dos quadros internos da polícia. A contagem própria de gols marcados, assinalada precariamente numa pequena caderneta, inspira desconfiança, é alvo constante da chacota de seus colegas.
De qualquer maneira, o jeito brincalhão de Jogador, esse é seu apelido, não sem razão por óbvio, ajuda a desanuviar o ambiente de tensão em virtude da presença do custodiado naquela saleta, sob o qual recai a acusação bem consistente de ser o líder da organização criminosa responsável pelo desvio de milhões reais de verba pública destinados à compra de materiais hospitalares.
O agente Freitas, que também se encontra no mesmo espaço físico, escuta com bom humor as exageradas proezas de seu colega centroavante, enquanto divide atenção ao vigiar o sujeito algemado a sua frente, que fora conduzido por sua equipe até a Superintendência da Polícia Federal, e de quem nota a gradativa mudança de postura, a qual outrora, era empertigada, provocativa, demasiadamente arrogante, mas que com o avanço do tempo, passou a ser mais comedida, visivelmente mais retraída, principalmente quando, pareceu-lhe cair a ficha, ao assinar no anverso do mandado de prisão preventiva expedido em seu desfavor.
Gomes, informa ao detido: “Bergoinne, provavelmente por causa do horário avançado, a próxima refeição somente será servida no estabelecimento prisional no dia seguinte, não é prudente ficar tantas horas sem comer”. Freitas, em sintonia com a mensagem de seu colega, aproveita para apontar a quentinha ao lado do preso, oferecida há razoável tempo e desprezada desde então por Bergoinne que, após o ronco alto de sua barriga vazia, parece processar com mais atenção as informações repassadas pelos policiais federais, enquanto fita a embalagem de alumínio, momento em que finalmente cede a sua necessidade fisiológica, e puxa o recipiente para seu colo, retira-lhe a tampa, pega os talheres de plástico e mastiga com voracidade a comida simples do cardápio, que por sinal, milhões de brasileiros ficariam felizes em ter em suas mesas: feijão, arroz, batata e um pedaço de carne.
O agente federal enquanto acompanha a cena, imagina o quão deve ser o choque de realidade para aquele sujeito, que dias antes circulava nas esferas do poder, frequentava restaurantes sofisticados, esbanjava vida luxuosa, adorava ser fotografado nas badaladas festas das altas rodas da sociedade, e que possivelmente jamais tivesse imaginado que fosse ser alcançado um dia.
O instante de abstração é interrompido pelo anúncio de Gomes de que o preso já pode seguir para o presídio, todos os contratempos foram resolvidos.
Ao ouvir essa repentina informação, imediatamente o semblante de Bergoinne perde a cor, suas costas vergam, sua transpiração aumenta, o odor azedo de seu suor fica ainda mais forte. Ele, visivelmente apreensivo, pergunta ao policial: “A imprensa está aí fora?” Freitas não se espanta com a frivolidade da preocupação daquele indivíduo, algo que não é incomum nesses casos, mas que de qualquer forma, ilógico para quem está prestes a ser encaminhado para um presídio, que por vezes pode se tornar um local hostil, em que a privacidade é algo raro e que sobreviver é desafio perene.
Enfim, o agente retruca: “Nesse momento, a imprensa é o menor de seus problemas. E digo mais, desde cedo aprendi que nunca terei motivo para esconder o meu rosto”.
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Foto: Saul Schramm
Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, graduando em Inteligência Competitiva e Contrainteligência Corporativa, Bacharel em Direito e Administração.