Crônicas - "Nossas escolhas"
Decisões na vida de um jovem que mudam o destino da sua vida
Hélio C. Freitas Filho
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Nossas escolhas
Já faz três anos que o inspetor Chichorro trabalha naquela mesma delegacia de bairro, ambientara-se por completo ao local, se adaptara ao tumultuado ritmo do plantão com suas incessantes demandas de urgência, num frenético entra e sai de pessoas. De tão adaptado, consegue inclusive encontrar um tempinho de prosa para trocar com o mais retraído dos policiais do turno. Valério é seu nome, para todos os demais, Seu Valério, sobre quem pouco se sabe, sua áurea é de mistério, a idade avançada o mantém mais isolado dos demais, ninguém sabe muito sobre ele.
Sujeito reservado, se sente à vontade apenas na presença de Chichorro, que de tão diferente geração, poderia ser seu neto. O processo de aproximação entre os dois foi lento, ocorrido gradativamente na base da mútua colaboração diante das várias dificuldades enfrentadas no exercício da profissão.
Chichorro escuta seu nome: “Alexandre”. Instantaneamente sabe que é ele a lhe chamar, único que se recusa a pronunciar seu apelido, disse-lhe uma vez que isso não é coisa de gente séria, só bandido tem. Valério segura em uma das mãos um grosso e desbotado álbum, pede para seu colega se sentar ao lado. Em seguida, revela que ali estavam as fotografias de todos os presos que estiveram sob seus cuidados na época em que trabalhou na Polinter, a já desativada carceragem da Polícia Civil.
Chichorro se surpreende com a declaração, de pronto é despertada sua curiosidade, olha atentamente cada uma das páginas folheadas a sua frente, se impressiona com a quantidade de tantas pessoas catalogadas, um arquivo fabuloso. Em dado momento, a imagem de um indivíduo chama especial atenção, Valério percebe a indisfarçável reação, de imediato verbaliza a alcunha do sujeito algemado: “Esse é o Trovão, criminoso perigoso, segundo escalão de facção, preso na penitenciária de segurança máxima Bangu II por envolvimento em extorsão mediante sequestro”. Chichorro se impressiona com a ficha criminal, e sem hesitar, faz espantosa afirmação: “Eu o conheço”.
O interesse logo se inverte, o antigo policial fica intrigado: “Como assim?”. Então, o jovem passa a esclarecer: “Sabia há algum tempo que ele tinha virado bandido, o único da família que seguiu esse caminho. Todos os quatro irmãos são trabalhadores, obedeceram aos rigorosos aconselhamentos de seus pais, que são pessoas honestas, muito religiosas. Seu pai é pastor, sua genitora, fervorosa devota, era empregada doméstica. Por anos ela trabalhou lá em casa, ao lado de minha mãe, que dentro do possível a ajudava com contribuições extras e acompanhava a luta diária dela para cuidar de sua prole. Quando crianças, eu e Trovão éramos rivais nos torneios de futebol, ele jogava na linha no time do Morro da Mineira, eu fechava no gol da equipe do condomínio colado à comunidade. As costumeiras provocações, somadas ao fato de cada um torcer para clubes diferentes no campeonato carioca, acirravam ainda mais a sadia disputa.
Nosso time, formado por garotos residentes no mesmo conjunto habitacional era bem entrosado, quase sempre levava a melhor no futsal, mas quando íamos jogar no campo de terra lá no alto do morro, o resultado era o inverso. A máxima de que a torcida é o fiel da balança fazia todo o sentido. O tempo passou, viramos jovens, depois adultos, as responsabilidades vieram, as competições acabaram, perdemos contato, apenas notícias esparsas”.
Nesse ponto, Valério interrompe a surpreendente narrativa com um questionamento de quem conhece muito bem a violência urbana instalada há anos na cidade: “Você ainda mora nesse condomínio?”. Chichorro compreende a abrangência da preocupação, então explica: “Mudei de lá tão logo me tornei policial. A notícia de que virei tira correu rápido demais, praticamente me vi obrigado a sair às pressas. Optei por não correr maiores riscos em razão de possíveis represálias dos traficantes da região.
Paguei um preço alto ao decidir por essa profissão.” Valério acena positivamente com a cabeça, concorda com a última assertiva, momento em que aproveita para emendar com outra indagação: “Desde então nunca mais soube de Trovão?” Chichorro responde melancólico: “Nessa mesma época em que sai do condomínio, ele tinha assumido o posto de gerente do tráfico local.” Valério absorve a informação, reflete a respeito, filosofa: “Tempos distantes em que a rivalidade era saudável, tempos atuais a rivalidade pode ser mortal”. Chichorro complementa: “Nossas escolhas, consequências por toda vida”.
Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, Bacharel em Direito e Administração.