Crônicas - "Nunca pisei numa delegacia"
Encontros que o trabalho policial proporciona
Hélio C. Freitas Filho
Nunca pisei numa delegacia
“Sou homem sério, nunca pisei numa delegacia”, é a frase que ecoa no ouvido de Carlos Henrique desde que era criança, pronunciada de forma recorrente por muitas pessoas mais velhas, toda vez que desejavam externar o quão eram honestas. Carlinhos, como seus amigos mais próximos costumam lhe chamar, cresceu imaginando que o malfadado lugar fosse um ambiente obscuro, frequentado unicamente por pessoas ruins, desajustadas com as regras das leis, desobedientes à ordem pública.
Curiosamente, em virtude de opções conscientes, escolhas pragmáticas que a vida lhe apresentou, passados mais de vinte anos, sua infância há muito deixada para trás, lá está ele, em seu novo ambiente de trabalho, ironicamente, uma delegacia de polícia. Será seu sétimo plantão na Polícia Federal de Naviraí, localizada no sul do estado de Mato Grosso do Sul, e mais uma vez lhe caberá tomar conta daquele espaço físico durante as vinte quatro horas seguintes.
Essa passou a ser sua atividade laboral, tornara-se policial federal, acostuma-se gradativamente à nova rotina, mantém maior contato com colegas de profissão, durante os períodos matutino e vespertino, momentos em que há circulação de várias pessoas, onde também transitam advogados, testemunhas e funcionários prestadores de serviços, cidadãos de bem em geral. Com o passar das horas, pouco a pouco diminui essa agitação, escasseia o barulho, se inicia a terça parte de seu período, e com ela começa, paradoxalmente, a fase de sua grande preocupação, causada justamente pelo preso solitário que está custodiado na cela dos fundos da edificação.
Não à toa aflora essa apreensão, o detido tem se mostrado emocionalmente instável, chora copiosamente desde que foi preso em flagrante pelos policiais militares do DOF (Departamento de Operações de Fronteira), quando tentava cruzar a fronteira do Paraguai em direção a cidade brasileira Mundo Novo carregado de agrotóxicos ilegais. Conduta reprovável, prevista no código penal brasileiro, não admite condescendência, embora evidente que ele seja apenas uma mão de obra barata, contratada para transportar os perigosos produtos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente.
O agente Carlos ciente do elevado risco de que Baltazar, esse é seu nome, possa vir a cometer algum ato contra a própria vida, num gesto de desespero, de inconsequente estupidez, tenta, dentro do possível, tranquilizá-lo, principalmente nesse horário, onde é perceptível a piora de seu já combalido estado psicológico. Mesmo separados por grades, puxa conversa com o preso, passa a conhecer sua história, afinal, já é o quarto plantão em que se encontram naquela situação.
Dessa maneira, sabe que o rapaz reside com a mãe, que é filho único, e que seu pai deixou o lar após ser flagrado com outra mulher, o que provocou grave desentendimento entre ambos há mais de cinco anos, e desde então não mais se falam, sequer conhece o paradeiro dele. Carlos esquadrinha o encarcerado, deduz a princípio não ser um indivíduo perigoso, assume as graves implicações de uma atitude moralmente questionável, sem respaldo legal, não autorizada por seus superiores, ainda assim decide retirá-lo do claustrofóbico cubículo, o conduz para um cômodo, onde há uma televisão, que poderá distraí-lo a noite toda. Crê ser essencial manter a mente dele ocupada para aplacar seu desespero, no entanto, não esmorece a guarda, deixa tudo trancado, janelas e portas, até de manhãzinha, quando o reconduz para a cela.
A cena se repete a cada plantão de Carlos, que se acostuma a arriscada ação. É notório que sem recursos financeiros, o preso fica à mercê de uma sofrível assistência jurídica. O agente federal incomodado com a situação de quase abandono daquele prisioneiro tem outra iniciativa. Secretamente inicia pesquisas em bancos de dados, pede ajuda a conhecidos, e após inúmeras tentativas, consegue finalmente localizar e manter contato via telefone com o arisco interlocutor. Explica-lhe os fatos, ressalta circunstâncias, mas abruptamente a conversa se encerra.
Carlos estranha o desfecho, não nutre esperança, todavia, em seu plantão seguinte, passadas setenta e duas horas, logo no início do dia, um senhor de boa aparência, vestido em traje refinado, se dirige ao policial, apresenta-se cordialmente, ao lado de um advogado, que exibe um alvará de soltura. Imediatamente é levado por Carlos para os fundos da delegacia, sua presença é vigorosamente anunciada, no mesmo instante em que é aberta a porta da cela: “Baltazar, visita. É seu pai.” Não há uma só palavra, apenas um mútuo olhar de ternura, seguido de apertado e demorado abraço entre os dois, pai e filho.
As lágrimas escorrem, mágoas são deixadas de lado, o perdão recíproco é instantâneo, estampa-se o amor incondicional. O agente sabe que se expõe demais profissionalmente, mas regozija a oportunidade de testemunhar aquele reencontro. Reflete sobre os dizeres dos mais antigos, conclui que aquele que se orgulha de dizer que nunca pisou numa delegacia, talvez jamais compreenda a complexidade da sociedade.
Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, Bacharel em Direito e Administração.