Crônicas - "Seres isolados"
O contato com a cultura de um povo totalmente isolado
Hélio C. Freitas Filho
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Seres isolados
Foto: Redação Brasil de Fato
Resta apenas um dia para a missão se encerrar, o clima é de despedida no acampamento montado nas entranhas da Floresta do Rio Pardo, no distrito de Guariba, situado no município de Colniza, noroeste do Mato Grosso, a cerca de mil e cinquenta quilômetros da capital Cuiabá.
O motivo da presença de uma equipe formada por quatro policiais federais naquele local tão remoto é garantir a integridade física dos funcionários da Fundação Nacional do Índio, que lá estão para tentar manter contato com índios isolados, que assim são denominados os indígenas com ausência de relações permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca frequência de interação, e que teriam sido vistos na mata.
Contudo, o intento dos servidores da FUNAI desagrada e enraivece alguns empresários madeireiros, que segundo denúncia, teriam formado um consórcio para a contratação de guachebas (pistoleiros) com o propósito de dar cabo dos silvícolas e, desaparecer com quaisquer vestígios de suas existências, a fim de evitar que a região viesse a ser considerada área de reserva indígena. Os próprios servidores do órgão indigenista já haviam sido ameaçados mais de uma vez. Pontos de vistas opostos se chocam, o potencial econômico da terra gera cobiça, e a possibilidade de uma iminente proibição da exploração da atividade madeireira naquele vasto perímetro acirra os conflitos.
O tema suscita paixões, brotam intolerâncias e até mesmo mortes ocorrem. Com o desígnio de evitar o pior desfecho, e sem tomar partido no mérito da delicada questão, os agentes federais Carvalho, Oliveira, Sergio e André são enviados para esse perigoso encargo, passam a representar as forças de segurança naquele longínquo ponto do território, desconhecido para a imensa parte da população brasileira. Os policiais logo se deparam com uma realidade completamente diferente de seus habitats, o conforto de seus lares fica para trás, desaparece. Têm de se adaptar, dormem em redes dependuradas em troncos de árvores, com suas armas de fogo próximas à mão para quaisquer eventualidades.
O uso de fossa seca para as necessidades básicas passa a ser rotineiro, assim como o constante zunido de mosquitos no ouvido. Banho só de rio, sempre à luz do dia, invariavelmente com uma vareta na mão usada para cutucar o fundo do leito e espantar possíveis arraias com poderosos ferrões em suas caudas. À noite, nem pensar em ir se lavar, a chance de se topar com cobras e onças é algo temerário, as pegadas dos felinos estão por toda a parte.
O grupo, numa de suas incursões, já havia sofrido ataque de marimbondos-tatu, suas dolorosas picadas deixam todos mais cautelosos, principalmente porque não contam com assistência médica de urgência. Inexiste contato com o “mundo exterior”, simplesmente não há cobertura telefônica naquela densa floresta, o mais próximo disso é o inseparável radinho de pilha do cozinheiro do grupo, Seu Joãozinho, que com muita dificuldade consegue captar as ondas curtas de uma estação de rádio clandestina localizada numa cidade fronteiriça no Amazonas.
Carvalho gosta de prosear com o peculiar mestre cuca, que embora de aparência frágil, mantém rigorosa disciplina, e de vez em quando, enxota os curiosos das dependências daquilo que convencionou chamar de cozinha, o que na verdade corresponde a uma área coberta por telhas, sob a qual estão um fogão a lenha, algumas panelas, e uma pequena despensa. Diz que o segredo para manter saborosa a comida é conservá-la na banha. De jeito simples, fala que está no acampamento sem ir à cidade há mais de cento e oitenta dias, confidencia que já foi garimpeiro, ganhou e perdeu dinheiro, que pegou malária, adoeceu, sofreu e sobreviveu. Depois de tantas experiências, afirma que prefere a companhia dos bichos da floresta, do canto dos trinca-ferro, do ronco dos macacos bugios, da liberdade de sentir, ao amanhecer, o orvalho nas folhas das árvores. Confessa que já se decepcionou demais com as pessoas, que desistiu há muito tempo de constituir família, sua vida é ali, no mato.
Carvalho tenta compreender as revelações de seu interlocutor, enxerga profundidade nas declarações, consegue perceber mudanças positivas em seus colegas de profissão, as adversidades impostas pelas circunstâncias do trabalho moldam um espírito maior de coletividade. O desapego aos bens não essenciais estampou o que realmente tem importância. O agente tem consciência de que a missão policial está próxima do fim, que não conseguirão visualizar os arredios indígenas nesse intervalo de tempo restante, quiçá serão vistos algum dia. Mas uma constatação salta aos olhos, que aqueles abnegados funcionários públicos acreditam realmente na importância de suas incumbências, e que ainda, em pleno século XXI, tentam localizar uma tribo isolada, que corre sério risco de ser exterminada. Todavia, na esteira desses acontecimentos, possivelmente em razão da luta contra o tempo, os próprios funcionários não tenham atentado para o fato de que também se tornaram “seres isolados”.
Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, Bacharel em Direito e Administração.