Crônica - Protetor de anjos
O impacto da ação policial na proteção de crianças é o tema central da crônica do agente Hélio Freitas
Hélio Freitas, agente da PF e vice-presidente do Sinpf-ES
Comunicação Sinpf-ES
![[]](https://sinpf.org.br/arquivos/artigo/eda857ca15cfa12b546cb5c648cf563b.jpg)
O agente federal Carvalho, embora desfrute da confiança dos policiais lotados na Unidade de Crimes Cibernéticos, que funciona em frente ao seu setor, ainda assim, em respeito ao protocolo de compartimentação afeto às investigações sigilosas de cada lotação, bate na porta e pergunta se pode entrar. De imediato, o também agente Ricardo, responde alto. “Claro, meu camarada”.
A alegre receptividade estampada num sorriso largo é característica marcante daquele profissional, que apesar de estar compenetrado na análise do conteúdo de um computador apreendido aquela manhã, em razão da deflagração de mais uma operação policial, a segunda só nessa semana, não se furta em recepcionar seu colega para uma rápida prosa.
Carvalho, ciente dos inúmeros afazeres do demandado policial, deseja ser breve em sua abordagem: “Sei o quanto você e os demais colegas da UCC se empenharam para pegar esse pedófilo. Parabéns por mais esse trabalho. Sensacional!” Ricardo, como de praxe, agradece humildemente em nome de toda equipe, mas aproveita a ocasião para fazer uma pontual correção: “Nós dessa unidade não mais chamamos de pedófilo esse tipo de criminoso, que abusa sexualmente de adolescentes e crianças, tanto meninas como meninos, porque essa denominação remete a tese sustentada pela defesa, que argumenta que um indivíduo assim é doente, e por isso não poderia ser preso em cadeia comum, mas em vez disso deveria receber tratamento psiquiátrico em unidade especial, provavelmente com uma pena mais branda”.
Carvalho compreende a explicação, desconhecia a diferenciação, percebe a complexidade do assunto, e instantaneamente lhe é aguçada a curiosidade, a ponto de logo indagar qual seria a correta nomenclatura. Nesse instante, mesmo sem desgrudar o olhar do monitor a sua frente, Ricardo de pronto esclarece: “Abusador sexual infantil”, mas em seguida, de forma inesperada solta um berro que ecoa por toda a sala: “Achei”!
E quase sem tomar fôlego, emenda: “Acabo de encontrar os arquivos com as cenas de abusos produzidos pelo alvo de hoje, o professor, assim o apelidamos. Cinquenta e nove pastas ao todo, organizadas pelos nomes das vítimas, número bem maior do que as treze admitidas espontaneamente pelo serial predador no momento em que foi interrogado”. Carvalho espantado, visivelmente sob impacto da revelação, sem calcular direito as consequências, solicita assistir a um desses vídeos.
Ricardo compreende a curiosidade de um policial não familiarizado com o tema, e o chama com o dedo indicador direito para que se poste a seu lado, e assim que isso ocorre, clica no mouse em cima do arquivo selecionado, que passa a rodar as cenas entre o adulto mais cedo capturado pela Polícia Federal e um menino que aparenta ter no máximo oito anos.
O curto vídeo caseiro traz imagens grotescas, provoca múltiplas sensações em Carvalho, lhe desperta sentimentos antagônicos, que misturam incomensurável pena em relação a criança atacada, submetida às maiores atrocidades, que teve a integridade maculada, a dignidade esfacelada, a inocência para sempre violada, ao mesmo tempo em que percebe um sombrio desejo lhe invadir; o de pôr as mãos no covarde algoz para lhe encurtar a sombria existência.
Definitivamente visualizar aquele material lhe inquietou, fez-lhe recordar de um diálogo realizado num filme antigo sobre uma trama macabra, chamado 8 Milímetros, travado entre o detetive (Nicolas Cage), personagem principal, e um punk balconista de locadora (Joaquim Phoenix), que faz o seguinte alerta: “Em contato com o submundo, ninguém sai inteiramente ileso”. Passados tantos anos, Carvalho constata o quão é verdadeira aquela frase retratada numa película no final dos anos noventa, situação que explica em parte, o motivo pelo qual poucos policiais desejam se especializar nessa matéria.
Ainda absorto em seus pensamentos, porém mais recomposto, se vira para o amigo, e profere as seguintes palavras: “Obrigado por se dedicar a tão espinhosa missão, você é um protetor de anjos”. Ricardo sorri e segura com força seu inseparável terço pendurado no pescoço.
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Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, pós-graduando em Inteligência Competitiva e Contrainteligência Corporativa, bacharel em Direito e Administração.