Crônicas - Põe na conta
Reflexões sobre uma investigação
Hélio C. Freitas Filho
Põe na conta
Autor: Agente Hélio C. Freitas Filho
O relógio de parede da delegacia marca 22:30h, quando toca o telefone fixo na mesa do investigador. O policial pressente de quem seja a ligação àquela hora da noite. Pega o gancho após o terceiro toque, põe no ouvido, de imediato escuta: “Seu Raimundo?”. Ele responde: “Sim, Dona Celia. Tudo bem com a senhora?” Esse mesmo ritual é repetido a doze meses há cerca de dezesseis anos, desde que seus caminhos tragicamente se cruzaram. Ela jamais esqueceu o zelo dispensado a sua família no momento mais difícil de sua vida, quando sua única filha de quinze anos misteriosamente desapareceu em março de 2005, desde a fatídica data, nunca mais foi vista.
Na época, o policial recém removido para trabalhar no interior maranhense, empenhou-se ao máximo nas diligências. Contudo, se deparou com inúmeras dificuldades para dignamente conduzir o trabalho; a precariedade da máquina pública era gritante, irrisória a quantidade de policiais, inexistia viatura em condições de uso, recursos básicos tecnológicos eram promessas não cumpridas, além de obscura condução do inquérito, foram fatores que prejudicaram a elucidação mais apurada.
Como por encanto, a voz daquela senhora reaviva sua memória, traz lembrança dos detalhes do caso, mas, ainda assim ele não compartilha suas permanentes dúvidas, não divide suas inquietações. Ao longo dessa antiga investigação, recorda-se que a adolescente, numa noite festiva, momentos antes de seu sumiço, esteve namorando em local ermo um “ficante”, sobrinho do prefeito, rapaz mais velho, que na ocasião prestou depoimento confuso, com lacunas que sequer foram checadas, muito menos confrontadas. Ainda assim, a versão apresentada se tornara satisfatória para o delegado, que não escondia seu desejo de se mudar o quanto antes para a capital e, para tanto, elucidar de forma célere o caso de ampla repercussão midiática e grande clamor público, seria primordial em sua pretensão.
Ao passo que a cidade carregava um pesado fardo, fora aterrorizada por um maníaco no início do ano de 2002. O assassino em série, conhecido como Maníaco da Sombra, andarilho que vivia pelo mato, foi preso em 2006, quando vagava pela região. Confrontado com diversas provas, ele assumiu a autoria de catorze assassinatos, mas justamente o de Cristina, filha de Dona Celia, jamais admitiu.
Essa inflexível postura do acusado, mais algumas sutilezas e o fato de haver diferença no modus operandi do agressor, que nos outros ataques, vitimou mortalmente casais em locais escuros da cidade, escolhidos para namorar, mantinham acesa uma ponta de desconfiança em Raimundo de que algo não encaixava corretamente. O arguto policial leu inúmeras vezes as mais de três mil páginas do inquérito, onde se via farta documentação suficiente para indicar a autoria dos tantos crimes assumidos pelo frio assassino, exceto o de Cristina.
Numa agilidade incomum da justiça, em menos de três anos, o monstro, assim ficou publicamente conhecido, já estava no banco dos réus do Tribunal do Júri. Utopia achar que haveria imparcialidade, os jurados estavam contaminados, impressionados com a vasta ficha criminal do réu e pelo seu perfil de sociopata amplamente divulgado. Sua condenação previsível, teve logo o veredito; sentenciado a trinta anos em regime fechado serviu para a aplacar os ânimos da população. Desde então, cessaram os assassinatos dessa natureza. Justiça feita? Talvez, pensa Raimundo, que passados tantos anos, continua a trabalhar em sua terra natal. Nesse instante, ao mesmo tempo em que fala ao telefone, reconhece no noticiário da TV aquele mesmo delegado, envelhecido, a dar entrevista, agora como atual chefe de Divisão de Homicídios em São Luís/MA.
Sabe que o tal prefeito também prosperou, virou senador, e seu sobrinho sumiu no mundo pouco tempo depois daquela noitada de amor ou de terror. Até hoje o desenvolto comportamento sexual é tabu para aquela humilde família, que desconhece esse lado mais liberal de sua doce menina, revelado secretamente por sua melhor amiga ao perseverante policial, a quem confidenciou: “Cristina estava grávida”. Essa nova perspectiva não pôde ser examinada, a exumação precisava de um corpo, que jamais foi encontrado. Mas, quem se importa, todos naquela pequena cidade até hoje acreditam que o único monstro que por lá passou está bem guardado, trancafiado numa jaula.
Resta ao investigador confortar aquela senhora, que adoecida pelas circunstâncias terríveis vivenciadas, se apega na sensação de que a justiça do homem foi feita. Raimundo tem tato, não deseja reabrir a ferida, pensa ser melhor assim. Conclui: põe na conta do serial killer.
Hélio C. Freitas Filh é agente de polícia federal, carioca, casado, radicado no Espírito Santo, Bacharel em Direito e Administração.