Artigo - Plano de Defesa, a quebra de paradigma
Hélio Freitas, agente da PF e vice-presidente do Sinpf-ES
Comunicação Sinpf-ES
O agente federal Carvalho mais uma vez olha para seu relógio, gesto repetido inúmeras vezes num curto espaço de tempo e intensificado cada vez mais próximo do início do tão aguardado exercício simulado do plano de defesa da cidade de Alfenas, considerado um núcleo urbano de expressiva importância localizado na região sul-mineira.
A noite fria avança, os ponteiros indicam faltar apenas trinta minutos para o dia seguinte, um pequeno atraso em razão do grande volume de providências realizadas: isolamento da movimentada praça Getúlio Vargas, interdição das vias públicas que lhe dão acesso, guinchos para transportar as carcaças de automóveis disponibilizadas pela Polícia Civil que serão incendiados na exibição, distribuição do armamento e da munição de festim para os atores de bandidos, realmente a lista de tarefas parece ser inesgotável.
Objetiva se o realismo, prima-se pela segurança de todos, tudo pensado em detalhes, exaustivamente orientado pelos monitores ao longo de três dias de curso, ensaiado repetidamente horas antes pelos dedicados voluntários, oriundos das diversas forças de segurança pública e até de instituições privadas, alcança-se na prática a tão propalada integração. A ruidosa plateia de populares que se concentra atrás das barreiras de ferro colocadas pela Guarda Municipal intui que está para começar o espetáculo, até um exaltado bêbado finalmente emudece, paira no ar a expectativa, momento em que um travesso cachorrinho resolve perambular justamente na praça central, palco principal da encenação que se avizinha.
Prontamente um oficial da Polícia Militar local recolhe o peludo em seus braços, repasso-o com zelo para o responsável da Defesa Civil, que o encaminha para longe dali, certamente o barulho aturdiria o bichano, o colocaria em risco. Imediatamente, logo após essa providencial atitude, surge o comboio dos assaltantes, são ao todo sete veículos de passeio, mais um caminhão, que seguem em marcha lenta, até que o primeiro automóvel freia bruscamente, o cantar de seus pneus ecoa alto, reverbera toda extensão do perímetro.
Em seguida, os criminosos encapuzados agem com truculência, disparam para o alto, lançam granadas, gritam, fazem estardalhaço, dominam rapidamente o terreno, avançam contra os desprevenidos transeuntes, os fazem reféns, um deles resiste, tenta defender sua companheira, é gravemente ferido. A cadência incessante dos estouros não dá trégua, incomoda os ouvidos, provoca desconforto, a autenticidade das cenas esbofeteia os céticos, cutuca os refratários, os sisudos semblantes do eclético grupo de expectadores postados em frente à Igreja Matriz São José e Dores reflete perplexidade, o ambiente descontraído desaparece, os sorrisos somem de vez.
Um dos formadores do curso, o agente Rodrigues, assume algumas vezes a rédea da dramatização, incorpora o diretor da sétima arte, orienta os atores no local. Profissionais da imprensa estão em êxtase, captam as melhores imagens, buscam diferentes ângulos, tentam registrar tudo em suas modernas câmeras, até drones são usados, a compilação desse material será fantástica, assim pensa Carvalho. Parte do bando invade uma das agências bancárias, depois a outra também é tomada, os dispositivos de segurança são acionados, a fumaça ocupa completamente as áreas do autoatendimento de ambas, tudo conforme o script traçado, ainda assim malotes de dinheiro são roubados.
Uma enorme explosão de fogo é vista, o clarão ilumina o espaço público, a radiação de calor é sentida na pele dos mais próximos, incrível a variedade de tantos artefatos empregados. Passados quase vinte minutos que parecem uma eternidade, ouve-se um disparo efetuado de uma direção desconhecida, em seguida, nota-se o corpo estatelado de um dos marginais, foi atingido por um atirador designado, o sargento Welington da PM mineira, um dos monitores do curso, estrategicamente posicionado e capacitado para o intento, assim foi o enredo desenhado.
A inesperada situação apavora a bandidagem, quebra seu planejamento, que com medo de ter mais baixas, suspende de imediato a continuação do arrebatamento em curso, ocasião em que alguns do bando tentam retirar o corpo sem vida de um dos seus, mas têm dificuldade, afinal o ator é um policial penal que pesa cerca de cento e quinze quilos, por essa, certamente não esperavam. Retornam para seus veículos, mas não sem antes completar o rol de crueldades, ao colocar um refém sobre o capo para garantir-lhes a incólume fuga do teatro de operações, do qual pouco a pouco se afastam até sumirem no horizonte por uma das ruas de acesso. Minutos depois irrompe uma viatura da Polícia Federal que breca quase em frente a agência bancária da empresa pública, em que a imagem sugere a preservação do local, enquanto na outra ponta da praça, surge uma ambulância em ritmo acelerado, sirenes estridentes acionadas, que ao estacionar, de dentro sai ligeiro um grupo de paramédicos para prestar os primeiros socorros à vítima, lesionada no pescoço por disparo de arma de fogo a queima roupa. Na sequência, o transportam na maca, o colocam no interior do transporte, cerram as portas traseiras, rumam para o hospital da região.
O público percebe que a exibição está próxima do fim, quando no céu límpido surge a imagem do helicóptero que faz sobrevoos até pousar placidamente em frente a basílica, e se tornar uma atração a mais naquele cenário. Pronto, a simulação termina, ainda assim, o povo não arreda o pé, fica a observar os disciplinados jovens do Tiro de Guerra seguirem o previamente acertado e recolherem os apetrechos resultantes daquele teatralizado conflito assimétrico. É a oportunidade que Carvalho aproveita para indagar as pessoas ao redor a impressão sobre o que acabam de presenciar. Um rapazinho de maneira espontânea toma a dianteira, fala prontamente que gostou bastante, mas ressalva que nada se compara a situação real que vivenciou de perto em Itajubá, diz que lá foram mais tiros, mais bandidos, e, muito mais demorado o assalto de verdade. A declaração é convincente, corrobora o quão é impactante uma ação de Domínio de Cidades, converge com os testemunhos de outros sobreviventes, extremamente traumático para aqueles que se depararam com algo de enorme violência.
Carvalho compreende a fala, concorda com seu interlocutor e ainda reforça que na ficção ali apresentada não havia nem explosivos por acionamento remoto, nem disparos das metralhadoras ponto cinquenta capazes de transfixar quaisquer blindagens, enfatiza que sem dúvida a realidade é muito pior. Mais curiosos se aproximam, espreitam a conversa, formam um semicírculo. Outro leigo interpela o policial, diz ter sentido falta do confronto na porta do banco, confessa que ansiava por esse clímax. Dessa vez o federal se vê na obrigação de lhe explicar pausadamente o principal objetivo proposto no plano de defesa, que é o de preservar vidas.
Esclarece que desde o começo da semana, os alunos inscritos no curso promovido pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, passaram a compreender que numa ocorrência dessa envergadura, a pior estratégia é o confronto descoordenado, aberto, reativo, já que os resultados podem ser catastróficos, o que não significa que as forças de segurança ficarão inertes, mas agirão no momento propício, longe do ambiente urbano mais povoado, atuarão em pontos da região isolados antecipadamente mapeados, onde haverá cercos e bloqueios.
Acrescenta que dessa forma poderão superar as condições até então desfavoráveis em relação aos criminosos.
Reforça as palavras proferidas por um dos formadores do curso, o cabo de Oliveira da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, que não se trata de ter mais ou menos coragem, mas de se usar melhor a inteligência para operar oportunamente. O aceno positivo das cabeças dos ouvintes demonstra de certa forma terem assimilado a explicação, embora visível a surpresa com a quebra de paradigma, que contraria a histórica cultura nas fileiras policiais de enfrentamento. Quando Carvalho pensa em prosseguir o embalado bate-papo, escuta o comando para que todos se dirijam até a associação comercial, local onde ocorrerá o debriefing para análise dos resultados obtidos e a opinião de todos os envolvidos.
Pede licença, sai em seguida, anda acompanhado de outros colegas de profissão algumas centenas de metros, logo chega ao ponto de encontro. O lugar está lotado, a euforia toma conta da atmosfera, percebe-se a alegria estampada naqueles que participaram diretamente da simulação ou ajudaram na organização do evento. O prefeito, responsável pelo patrocínio da infraestrutura demandada, agradece a todos, está exultante, tem ciência de que o investimento valeu a pena, sua cidade Alfenas estará mais segura, seu empreendedorismo renderá bons dividendos políticos, sobressairá positivamente em relação a outros gestores apáticos. As falas de agradecimento se sucedem, depoimentos efusivos são externados, cada qual a seu modo, perceptível a emoção de todos, fica evidente a sinergia entre as pessoas, o perfeito encaixe entre as inúmeras instituições ali representadas, é uma noite memorável.
Chega a vez do tenente coronel França da Polícia Militar de Mato Grosso, também orientador do curso, e integrante do Alpha Bravo, grupo responsável pela propagação da doutrina, que em nome da equipe agradece o convite e reforça a ideia de que o problema da segurança pública é responsabilidade de todos, e no embalo cita a fábula da ratoeira, em que exclama que na próxima vez que se ouvir dizer que alguém está diante de um problema e acreditar que não lhe diz respeito, deve-se lembrar que quando há uma ratoeira em casa, toda a fazenda corre risco, porque em uma comunidade o problema de um é problema dos demais, exatamente como ocorre numa ação de Domínio de Cidades que afeta a todos.
Hélio C. Freitas Filho, agente de polícia federal, cronista, articulista, coautor do Livro Alpha Bravo Brasil –
Crimes Violentos Contra o Patrimônio, pós-graduado em Inteligência Competitiva e Contrainteligência
Corporativa, bacharel em Direito e Administração